domingo, 14 de outubro de 2018

BAs






   Todos os Sábados o meu pai passava no “Dimas” a comprar o seu tabaquinho, umas quantas revistas e tudo o que tivesse saído desde a semana anterior de “Tio Patinhas”, não só para nós mas porque ele próprio era leitor compulsivo dos “patos”, como lhes chamava.
(as saudades que me atacaram agora… )
   Algumas das histórias eram sobre as aventuras do Huguinho, do Zezinho e do Luisinho, sobrinhos do Donald, nos escuteiros Mirins.  Estas, giravam recorrentemente  à volta da BA (boa acção) do dia. Acho que acabei de me dar conta (Dahaaaaaa!) que aqueles livros tinham mais profundidade do que a que eu lhes atribuía na altura. Bem, uns aprendem estas coisas no catecismo, eu aprendi nos livros aos quadradinhos... lol
   Dito isto, há já uns anos que me esforço, activa e conscientemente, por pôr em prática este “conceito”. Por BA, para que não haja dúvidas, entenda-se qualquer acto altruísta,  sem esperarmos nada em troca. Todos o fazemos espontaneamente de vez em quando, suponho eu.
   A questão é que a vida anda difícil para todos nós. Pode ser que esteja redondamente enganada, mas a sensação que tenho é de que estes possam ser (internamente, para cada individuo) os tempos mais complicados que se viveram nas últimas dezenas, senão mesmo centenas de anos. Não tenho memória de sentir este desconforto, esta ansiedade no ar, quando era pequena. Julgo que as pessoas, no geral, viviam a vida mais descontraidamente.
   O tempo parece ter sido uma das maiores perdas na evolução humana, ninguém tem tempo para nada, andamos todos sempre a correr. Com as novas tecnologias de comunicação, somos requisitados por N vias, N vezes por dia, o tempo de resposta esperado sendo sempre “já”. Novos e velhos debatem-se com problemas financeiros, crises de identidade, num mundo cada vez mais fundamentalista em tantos aspectos, enfim…  
   Costuma dizer-se que “de boas intenções está o inferno cheio”… acredito que ainda haja neste mundo muita gente cheia delas, constato no entanto que, na maioria dos casos, não chegam a passar disso. Infelizmente, não é difícil compreender porquê; andamos tão focados a tratar das nossas próprias vidas, que muitas vezes nos esquecemos de levantar os olhos do nosso umbigo.
   Não vou, no entanto, sequer abordar a questão de que o mundo seria muito melhor se fossemos todos “uns para os outros”. Parece-me tão óbvio que até dói.
   Não, o que venho partilhar hoje convosco, e que não posso demonstrar, não consigo provar, nem sequer me vou dar ao trabalho de tentar, é que a vida nos corre muito melhor se regularmente praticarmos BAs. Sei que para alguns isto é uma evidência, tão básica que nem precisava de ser referida, e que outros são muito mais cépticos em aceitar uma relação de  causa e efeito.  Enquadro-me, obviamente, na primeira categoria.
   A boa acção não precisa de ser a doação de um rim e a melhoria de vida não será provavelmente o Euromilhões… embora qualquer uma das coisas seja possível. Não, podem ser actos muito mais insignificantes e as consequências muito mais subtis.
    Oferecer um sorriso e retribuir os bons dias à senhora que nos atende algures,  olhando-a nos olhos é, infelizmente, hoje em dia uma boa acção. Vá-se lá entender porquê, a cortesia parece ter passado de moda, mas continua a saber bem. Ligar para saber de amigos ou familiares com quem não falamos há algum tempo, dispensar-lhes alguns minutos e dois dedos de conversa, também já não acontece frequentemente.   O céu é o limite… pequenos gestos, grandes ajudas… maior ou menor sacrifício pessoal… as boas acções vêm em todas as cores e tamanhos.
   O problema é que, se não nos obrigarmos a “ser” assim, a ter este hábito, tal como quem se obriga a fazer ginástica ou a lavar os dentes, o mais provável é que nos baldemos… não por mal, não por falta de intenção, mas a vida mete-se pelo meio, o tempo vai parar não sabemos onde, e quando damos por nós percebemos que não temos feito nada pelos outros.
   Acredito do fundo do coração que, tal como na tabuleta do café acima, a vida nos saia um bocadinho “mais barata” se oferecermos regularmente um bocadinho de nós ao próximo.

2 comentários:

  1. Texto extraordinário que nos faz pensar, que nos resgata por instantes da "voracidade dos tempos de hoje" (como se nos libertasse do "tic-tac" infernal da vida e nos devolvesse o tempo roubado). Sim, porque o importante se conjuga com o verbo "SER" e não com o verbo "TER" - "eu SOU feliz" em vez de "eu TENHO sucesso". Dei por mim a pensar que o próprio texto é, em si, uma BOA ACÇÃO! Muitos parabéns, Cristina, por este resgate "da vírgula maníaca, do mundo funcionário de viver" que a arte (neste caso, a da palavra) é exímia em proporcionar!

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  2. Obrigada, Gustavo.
    Há muito que este post andava na minha cabeça, à espera de cá vir parar mas, o tempo não dando para tudo, a prejudicada tem sido a escrita.

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