quarta-feira, 29 de junho de 2011

Get a grip

COM MÚSICA



Se desenhássemos um gráfico das nossas vidas, este assemelhar-se-ia a um electrocardiograma.
Há alturas em que estamos “em cima”, as coisas correm-nos bem, sentimo-nos alegres, contentes, bem dispostos, eufóricos ás vezes.
Infelizmente os “downs” fazem também parte do filme e são inevitaveis, é utópico julgar que lhes podemos escapar. Pontualmente, todos passamos por crises sérias a vários níveis.

Momentos difíceis, são isso mesmo, difíceis.
Como tal, não é evidentemente fácil encara-los, enfrenta-los, atravessa-los, ultrapassa-los... para isso sendo necessária muita coragem, muita força, muita inteligência, muita fé.

Os momentos de que falo, são aqueles que mexem profundamente com aquilo que somos, que nos fazem pôr tudo em questão, que nos viram a vida do avesso,  gerando o medo de um futuro pior.
Estes não só ameaçam a nossa felicidade como, pior ainda, a põem em questão.

Nos tempos complicados em que vivemos, todos conhecemos mais do que um caso de pessoas que estão, neste momento, ás portas do desespero.
Acontece que o desespero é extraordináriamente perigoso, é portanto imprescindível que não cedamos à tentação de entrar.

Como alguns de vocês saberão, pois já o mencionei anteriormente neste blog, aos quatorze anos fiz uma tentativa de suicídio.
Não foi uma chamada de atenção, não foi um aviso, não foi a fingir.
Não me atirei impulsivamente da janela, nem cortei os pulsos no sentido errado.
Estudei o assunto durante meses, pus detalhadamente um plano em prática e só não morri porque não estava escrito que assim seria.

Volto a falar do assunto agora, como quem saca do canudo para se candidatar a um emprego, para tentar merecer a vossa credibilidade.
Acreditem, sei muitíssimo bem o que é o desespero!
Quando se apodera de nós, só parece haver duas saídas possíveis, matarmo-nos ou deixarmo-nos morrer aos poucos. É demasiado poderoso, perdemos a capacidade de lutar, deixamos de ter o nosso destino nas mãos.

Deixem-me então partilhar convosco as conclusões a que, em trinta de dois anos de caminho, fui chegando.

Não há poços sem fundo, não há bem que nunca acabe, não há mal que sempre dure. Não há nada que não se ultrapasse, se tivermos os “cojones” de o fazer.
Aqui deixo umas quantas muletas mentais, que espero possam ajudar alguns.

Se em vez de nos encolhermos num canto, a carpir as nossas máguas, nos dermos ao trabalho de olhar para trás, conseguiremos, na maior parte das vezes, identificar várias ocasiões, em que nos sentimos tão mal ou pior e ás quais se sucederam períodos de agradável bem estar. Isto dá-nos uma noção de perspectiva sobre o assunto.

Se não o conseguirmos fazer, por esta “crise” ser pior, mais dura, mais difícil de ultrapassar do que qualquer outra por que tenhamos passado antes (há uma primeira vez para tudo), é então conveniente que façamos um esforço para nos lembrarmos dos casos semelhantes que conhecemos. Neles encontraremos certamente exemplos de pessoas que sairam victoriosas, que conseguiram salvaguardar a sua felicidade, recuperar a qualidade de vida, a paz de espirito, depois de uma experiência parecida com a nossa. É nesses que nos devemos focar.

Se, apesar de tudo, continuamos a conseguir fazer uma vida mínimamente “normal”, funcional, o caso não é tão grave assim, certo?!
Senão estaríamos a considerar atirarmo-nos da ponte...
Ora bem, isso parece provar que mantivemos algo de bom, não?! Desprezar ou mesmo repudiar os pequenos prazeres do dia a dia, entrar numa de mortificação, parece-me no mínimo masoquista.

Antes pelo contrário, acho imprescindível listarmos mentalmente tudo aquilo que ainda temos de bom nas nossas vidas. Valoriza-lo, acarinha-lo, procura-lo.
São as coisas agradáveis que nos dão ânimo para enfrentar as outras.

Se alguma coisa está mal, que não fique tudo mal... tenhamos então especial cuidado com os nossos actos, nesses momentos de fraqueza.
Não lixemos a relação com o nosso marido/mulher porque o nosso filho está no hospital. Não subvertamos a relação com os nossos filhos por causa de um divórcio complicado. Não nos atiremos para soluções totalmente impulsivas e irracionais devido a angústias financeiras. Não nos afastemos dos que são importantes para nós por causa de um desgosto de amor.

Se mantivermos intactos os nossos princípios, as nossas ideias, os nossos sentimentos, seremos muito mais coesos. Sentiremos que enfrentamos as adversidades de armadura, que estamos preparados para o que der e vier.
Se soubermos quem somos, o que somos, o que queremos, ao que estamos dispostos para o ter e aquilo de que não abdicamos de forma alguma, poderemos cair, mas muito mais fácilmente nos levantaremos.

Mesmo que não cedamos ao desespero, algumas alturas haverá em que nos sentimos efectivamente desesperados. Em que nos é difícil encontrar esperança. Em que não conseguimos descobrir qualquer solução. Em que achamos que já nada mais há que possamos fazer e tudo continua na mesma ou pior. Não conseguimos simplesmente aperceber a luzinha ao fundo do túnel.
É não ligar, não dar importância! Ignorar como quem ignora a birra de uma criança...
Há sempre momentos piores... à noite, de manhã ao acordar, quando algo ou alguém nos recorda aquilo que nos atormenta, quando as situações pioram.
É deixar passar... tudo o que sobe, desce... mas tudo o que desce também acaba eventualmente por voltar a subir.

Finalmente (esta última é só para aqueles que também acreditam, lá no amago, que assim seja), há a lei da atracção ou como lhe queiram chamar.
Imaginar o pior cenário, estar sempre a pensar nas coisas horríveis que podem acontecer, no que a situação pode ainda piorar, só serve para nos aterrorizar e atrair isso mesmo.
Pensamentos positivos, optimismo realista, boa disposição, parecem motivar “os anjos” a tomar conta de nós...  ;)

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Calor humano

COM MÚSICA



Entramos, de alguma forma, em contacto com outros seres humanos numa base quase diária.
Alguns serão perfeitos desconhecidos, com quem provavelmente não voltaremos a falar na vida, outros fazem parte do nosso dia a dia, pelo meio haverá potenciais relações futuras.

Do tipo de interação que mantemos com o próximo depende toda a nossa vida, quer queiramos quer não, “nenhum homem é uma ilha”.

Um amigo de outros tempos disse-me, mais do que uma vez, que achava que eu tinha “medo de ficar sozinha”. Pela repetição se depreende que nunca consegui transmitir-lhe efectivamente a minha opinião sobre o assunto.

É verdade, adoro viver rodeada de gente, invisto imensamente nas relações humanas, ás quais me entrego de corpo e alma e sinto fascínio pelo seu estudo, não em teoria mas na prática, por observação.
Poderia sem dúvida “ter medo” de perder tudo isto, não estivesse consciente de que de nós depende conserva-lo.

As pessoas não são objectos, não são canetas ou isqueiros, que se percam... As relações constroem-se, mantêm-se e alimentam-se, cada uma na respectiva categoria a que pertencem e as pessoas só se “perdem” se desprezarem a sua manutenção.

Por que raio haveria alguém que tenha gosto e facilidade em dar-se com os outros de “ficar sozinha”?! Se naufragasse numa ilha deserta, talvez... mas “ter medo” disso parece-me um bocado descabido.

Quem brinca com o fogo queima-se, não há bela sem senão e essas coisas... É um facto que nem tudo são rosas nas relações interpessoais.

Quem não ouviu já alguém afirmar que não quer animais domésticos por já ter tido algum, de quem gostava muito, que lhe provocou grande desgosto ao morrer...
Pois com as pessoas passa-se o mesmo, depois de uma qualquer má experiência, muitos temem entregar-se, com receio de se magoarem novamente.

Quer sejam relações profundas ou superficiais, estas apelam aos nossos skills sociais, á nossa capacidade de integração e adaptação, de manter o respeito e a consideração pelo outro, exigindo-os também para nós. Dão trabalho, requerem constante esforço e empenho, capacidade de empatia, altruísmo ás vezes. 

Como tal, muitos preferem manter os outros a uma certa distância de segurança, só se abrindo realmente para um grupo restrito de eleitos.
Quase que apostava que, esses sim, têm medo de “ficar sozinhos”. ;)

Viver é um risco, a todos os níveis, milhões de coisas “más” podem acontecer e não é por nos fecharmos na nossa concha, por criarmos uma armadura à nossa volta, que as vamos conseguir evitar. Quer queiramos, quer não, de uma forma ou de outra, havemos sempre de ir apanhando umas porradas da vida. A questão é se as suportamos sozinhos ou acompanhados.

As pessoas vão entrando e saindo das nossas vidas. Umas vão ganhando importância e outras perdendo. Uns aproximam-se e outros afastam-se. Temos surpresas agradáveis e decepções. Ganhamos rapidamente confiança e intimidade com alguns enquanto que com outros vamos criando relações fortes mas mais distantes, ao longo dos tempos.

Se tirarmos genuíno prazer de tudo isto, se apreciarmos os vários tipos de relações que preenchem as nossas vidas, se as acarinharmos, se lhes atribuirmos importância, quer sejam regulares ou esporádicas, dar-nos-emos conta de que é o calor humano que nos aquece realmente.
Uma vez que descubramos isto ficaremos sem dúvida dele dependentes, mas sem medos, pois saberemos que ele está em todo o lado e que basta abrirmos os olhos para o vermos e nos dirigirmos para ele.

Podemos não ter uma clássica relação de amizade com o nosso mecânico, a menina do supermercado ou a professora do nosso filho. Podemos não os convidar para nossa casa ou participar na sua festa de anos. Mas não deixa por isso de ser amizade se houver apreço mútuo, simpatia, um contacto agradável ao longo dos tempos.
Esse sentimento, a vários níveis, com vários graus de intimidade, distribuído por várias pessoas, faz com que nunca nos sintamos efectivamente sozinhos. Podemos estar sós, “home alone”, mas não estamos sozinhos.

Eu sei que hoje estou a soar muito "Jesus Cristo"... mas é que acho que o rapaz tinha razão, “amai-vos uns aos outros” até que é uma cena baril. 
E facilita-nos tanto a vida... ;)



PS: Este post vai dedicado áquele senhor que cá veio comer a açorda no outro dia, com os meus agradecimentos pela inspiração... ;)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Modernices

COM MÚSICA




Ao longo dos tempos os hábitos, a vida prática, as atitudes, as regras de convivência em sociedade, vão mudando. O homem vai-se moldando a novas realidades, vai-se, mal ou bem, adaptando ao mundo em que vive.  

Para alguns estas mudanças são mais difíceis de encarar do que para outros. Algumas pessoas tendem a agarrar-se com unhas e dentes ás suas “tradições”, à forma como as coisas funcionavam nas gerações anteriores, que lhes foram transmitidas pela vivência, pela educação.

Lembro-me, aquando da morte do meu pai, de uma pessoa da minha família se ter sentido indignada por eu me recusar a enviar (pelo correio) as antigamente habituais cartas de agradecimento, pelas condolências que me tinham sido dirigidas.
Não fazia no entanto para mim qualquer sentido. A todos agradeci, no momento, do fundo do coração.
A ideia de passar umas horas a escrevinhar à mão palavras em série, pareceu-me uma verdadeira perca de tempo. Tentar imaginar a reacção dos potenciais visados, ao abrirem a caixa do correio e darem de caras com um envelopezinho de borda preta, ainda me valeu uma que outra gargalhada interior.

A realidade é que algumas coisas, por razões várias, pura e simplesmente deixam de fazer sentido.
Quem é que, hoje em dia, tem tempo para passar a ferro toalhas ou lençóis de linho bordado, arear pratas, ou lavar fraldas?! Neste último caso está inclusivamente provado que, as modernas fraldas descartáveis, apesar de menos ecológicas, são muito melhores para os bebés, que têm agora os rabinhos sempre secos.
Quem é que tem casa para aqueles roupeiros fantásticos, em madeira maciça, com dois metros e meio de altura, para mesas de sala de jantar para dezoito pessoas, para lustres gigantescos?

Parece-me perfeitamente lógico que a tendência seja deixarmos cada vez mais de ter objectos físicos, a vida tende a tornar-se mais “digital”... Podemos ter toda a nossa música dentro de um iPod e os filmes num disco rígido. As coisas já não precisam de ocupar o nosso tão precioso espaço. Podem ser substituídas por formas de organização mais lógicas, mais fáceis de consultar, mais diminutas.

Por muito que pense, não consigo encontrar uma única vantagem em ter uma discoteca sob a forma de CDs, já para não falar dos vinis. Não são propriamente bonitos, ocupam espaço, têm caixas de plástico, uma pessoa vê-se grega para encontrar a musica que quer.
No que respeita aos livros, já o caso é muito diferente... São, pelo menos alguns, objectos lindíssimos, decorativos, têm um cheiro insubstituível, um manuseamento agradável, têm alma.
Há portanto que ter cuidado para não cair em extremos e não começar a descartar em excesso.

Da mesma forma, há comportamentos que também têm real valor, de que seria uma pena abrirmos mão. E no entanto, parece ser o que está a acontecer...
Tenho vindo a sentir-me cada vez mais “demodée”, para não utilizar a expressão “velha” que o meu filho não deixa, relativamente aos comportamentos humanos. Não consigo simplesmente compreende-los e, pior ainda, acho que são extremamente nocivos para a sociedade.

Não acho normal chegar-se com uma hora, hora e meia, de atraso a qualquer lado, na maior das descontrações. Não acho normal só se responder a convites se se estiver potencialmente interessado nos mesmos. Não acho normal aceita-los e baldarmo-nos á última da hora, porque afinal não nos apeteceu ir, ou porque surgiu entretanto um programa mais interessante. Não acho normal não se responder alguém que nos contacte, só porque ainda não temos uma resposta concreta a dar.

Na minha opinião, qualquer uma destas atitudes, ou outra do mesmo género, denota de uma incrível falta de consideração e respeito pelo próximo. Infelizmente, hoje em dia, parecem ser comummente aceites, como se não tivessem qualquer importância.
Quem as pratica aceita-as com a mesma ligeireza, quem contra elas se insurge fica rotulada de “careta”.

Acontece que não consigo acreditar que esta postura possa contribuir para o bem estar geral.
Qualquer uma das situações que descrevi acima, implica que alguém saia eventualmente lesado com a história... os jantares arrefecem, as pessoas não conseguem fazer planos por falta de informação, deixam-nos na dúvida sobre a recepção do “recado”, custam dinheiro umas vezes, outras simplesmente esforço.

Este esbanjamento, ou desperdiçar se preferirem, de energia, o  não considerar minimamente o outro lado, não sentir empatia pelo próximo... arrefecem terrivelmente as relações humanas. Assume-se o “estou-me nas tintas para o próximo e aceito na boa que ele se esteja nas tintas para mim”. É triste, é muito triste.

Alguns dirão, ah, que não é bem assim e tal e coiso, e que se as pessoas não se chateiam porque que não se há de fazer, e que os dias de hoje são muito preenchidos e stressantes, que não temos tempo nem para respirar, quanto mais para dar atenção a terceiros...
Pois, meus amigos, acreditem que, um dia, esta vos irá fazer falta!

Conforme me fui dando conta de que me estava a tornar um animal em vias de extinção, fui gesticulando menos, reclamando menos, com menos ímpeto.
Não posso impôr a ninguém a minha visão sobre a questão, por muito que a considere “a certa”.
Posso no entanto lutar por ela e, do alto da minha presunção, tentar “fazer ver a luz”.

As reacções são das mais variadas... desde aqueles que reconhecem uma atitude pouco simpática e se mostram genuinamente incomodados com a sua “falha”, àqueles que não conseguem sequer compreender a importância da coisa, passando pelos que dizem que sim mas que também, arranjam mil e duas justificações validíssimas, para a sua conduta e amanhã se for preciso voltam a fazer o mesmo.
Mas sabem que mais?!... Fiquem atentos e observem que, os primeiros, são aqueles com quem desenvolvemos verdadeiras relações de amizade!
E esta, hein?! ;)

terça-feira, 7 de junho de 2011

Blasés

COM MÚSICA



É típico das crianças quererem muito qualquer coisa, chagarem o juízo dos progenitores até à exaustão e, quando finalmente a conseguem, dentro de um maior ou menor espaço de tempo, já não lhe darem a mínima importância.

Embora tenda a atenuar-se com a idade e, na maior parte dos casos, a tornar-se menos obvio, para muitos este padrão de comportamento mantêm-se até à idade adulta sendo, na minha humilde opinião, um dos factores que nos transformam em “António Variações”.

Quantas vezes não vibramos com a possibilidade de comprar um carro - com a escolha do mesmo - a inspecção de todas as paneleirices, os compartimentos, o movimento dos bancos, a arrumação da mala, o rádio e o computador de bordo - a condução dos primeiros trajectos - a apresentação aos amigos, “bora lá dar uma voltinha” ou “já viste que tem isto ou aquilo?!”...
Depois o tempo passa. O carro deixa de ser novidade, para ser só um meio de transporte. Descobrimos coisas que nos chateiam, nas quais não tínhamos reparado anteriormente. Vai envelhecendo, vão aparecendo outros mais modernos, com novos gadgets, menos consumo de combustível e vamos começando a gostar cada vez menos dele e a ter vontade de comprar um novo.

É difícilmente igualável a excitação de comprar casa - a pesquisa - a selecção -  a visita ás várias hipóteses e o avaliar dos prós e contras de cada uma – as terríveis decepções com algumas e o entusiasmo com outras – o destinar divisões e idealizar a colocação dos móveis - a decisão final – os passos legais e burocracias – a mudança – a decoração – a vivência num novo espaço.
Ao fim de um tempo já tudo é familiar, vai-se aquele sentimento inicial de “depaysement”  (que perdoem os que não falam francês mas fartei-me de puxar pela cabeça e não encontro a tradução do termo para português – estão perfeitamente à vontade para o considerar cagonisse da minha parte). Já conhecemos os cantos à casa, já temos tudo no sítio, já adquirimos e instalámos as últimas necessidades. Quantas vezes não deixamos de dar importância áquilo que no la fez comprar.

Quem não conhece as borboletas no estomago de quem se apaixona?! Aquela sensação de que morremos se não “tivermos” aquela pessoa – as inseguranças –  a sedução – o jogo da conquista – a victória. Os primeiros tempos em que parece que não conseguimos dar atenção a mais nada nem a mais ninguém. Os primeiros beijos (e vou ficar-me por aqui), as palavras mais ou menos melosas mas sempre ternas, a cumplicidade, o companheirismo, a saudade quando se está longe.
Ás tantas parece que já conhecemos o outro como a palma das nossas mãos. Vai perdendo a capacidade de nos surpreender. A rotina do dia a dia vai atenuando o espírito romântico. As suas histórias foram sendo repetidas até que já nos fartámos de as ouvir, já as sabemos de côr, são sempre as mesmas. O sexo acaba por sempre igual, mais coisa, menos coisa. Vai-se perdendo o mistério, a pica.

O nascimento de uma criança é sempre um verdadeiro milagre, uma montanha russa de emoções. A esperança de poder conceber - a tentativa de engravidar - a dúvida, a incerteza – os primeiros indícios, a suspeita de que possa ser “desta” – a transformação do corpo – as idas ao médico, os exames, as ecografias – o parto – os primeiros banhos – os primeiros passos – as primeiras palavras.
Depois “o bebé” transforma-se definitivamente no Asdrubalzinho, passando a ter direito à qualidade de gente, com as suas características muito próprias.  Vamos descobrindo os seus pontos fortes e os seus pontos fracos. Vamo-nos dando conta, na pele, do que implica trazer uma criança ao mundo.  Vai-nos pesando – no físico – na liberdade – na responsabilidade – na necessidade de aprender aquilo que acaba por ser um verdadeiro novo ofício.

Resumindo, acabamos por nos tornar “blasés” relativamente ás coisas que mais espectativa, empenho e prazer nos provocam na vida.

Já sofri desse sindroma.
E depois, um dia, que não sei precisar, deu-se em mim um clic e algo mudou definitivamente (espero).
Não imaginam o prazer intenso e continuado que retiro actualmente do que tenho.

O meu jipe velhinho, do alto dos seus vinte anos, dos quais já mais de quatorze nas minhas mãos, continua a encher-me as medidas. Certo que acabei por só duas vezes fazer todo o terreno com ele, o meu pai, o meu companheiro de aventuras, baldou-se e não tenho outros amiguinhos para brincar. Dá no entanto um jeitão para subir passeios e estacionar com duas rodas num plano inclinado. No verão, permite-me chegar ao estacionamento dos calões, aqueles que não têm de palmilhar quilómetros a pé, praia fora, com todo o tipo de tralha ás costas, para chegar a um sítio onde possa dispôr de um que outro metro de areia à volta da toalha. Os bancos têm amortecedores e ainda hoje aprecio a sua carícia no rabo quando passo por um buraco. No transito vejo por cima dos outros carros, tenho uma visão de horizonte que alivia o sufoco de me sentir presa.

Não se passa um dia sem que olhe para o meu minúsculo  jardim, literalmente “debaixo” da Serra de Sintra, e não me sinta uma priveligiada por aqui viver. Sempre que levo o meu filho à escola, apanhando um só semáforo pelo caminho e ladeando campos onde pastam cabras e andam cavalos à solta, penso no stress de Lisboa e suspiro de alívio. Sorrio interiormente de cada vez que abro uma gaveta que corre literalmente sobre rodas, quando fecho uma janela e praticamente deixo de ouvir os ronronares do autodromo, quando me levanto numa madrugada de inverno e vou para a casa de banho descalça, sem frio, graças ao aquecimento central.

Passada a fase da descoberta e habituação à vida conjugal, constantemente me congratulo por ter conseguido levar uma relação avante (as anteriores, coitadinhas, não deveram muito à longevidade). Admiro-me de cada vez que conseguimos ultrapassar uma crise complicada e fico contente de ver a nossa relação dela sair mais forte.  Dou por mim a observar o outro e a encara-lo com respeito, consideração, admiração crescentes conforme os episódios da vida se vão sucedendo e novas facetas vindo a lume.

De cada vez que olho para o meu filho, quando lhe vou dar um beijo antes de me deitar, o observo enquanto corre para mim na escola, me lembro de como já tinha desistido de o ter. Sinto-me abençoada. Comovo-me com a evidência da sua felicidade, alivio-me de o saber tão bem, tão saudável, com uma vida tão facilitada. Nunca páro de me surpreender, tanto com as suas parecenças connosco, algumas das quais sem origem na imitação mas num qualquer mistério genético, como com as diferenças, aquelas coisas que são só dele. A sua educação, o investimento de todo o meu ser na ajuda á formação do seu, fascina-me numa base diária.

Enfim, como disse anteriormente, um dia dei-me conta de que “estava assim”, de que apreciava intensamente tudo aquilo por que tinha desejado e até algumas coisas que me foram caindo na sopa sem pré-aviso. Dei-me conta de que retirava prazer da maior parte das coisas/pessoas/animais que me rodeiam. Aprecio genuinamente cada interacção, cada observação, cada movimento rotineiro. Sinto-me em relação a quase tudo como se ainda estivesse “em viagem de nupcias”.

Com o tempo, as coisas que desejámos, pelas quais nos encantámos, lutámos e ganhámos, vão-se acumulando e vamos tendo uma panóplia de prazeres cada vez maior.
Se mantivermos a chama acesa, que nem homem pré-histórico, se apreciarmos realmente o que temos em vez de desejarmos sempre algo que não temos, se não nos tornarmos blasés em relação á nossa própria vida, esta será garantidamente muito mais gratificante. ;)