segunda-feira, 9 de março de 2009

Os furos do cinto

COM MÚSICA

A crise… ah, a crise… há muito tempo que não via tanta gente tão aflita…
Devo dizer que para mim “a crise” não é novidade, visto que em nossa casa começou já em 2005 e ainda não arredou pé…
Doutorada portanto em “viver em crise” queria então partilhar alguns pensamentos convosco que eventualmente poderão ajudar.


Cohabitam por este mundo fora várias realidades, vários graus de riqueza, de miséria… mas uma noção que me parece importante é a de que as dificuldades doem a qualquer um.
Uma fractura exposta é sem dúvida mais grave do que uma unha encravada, mas qualquer das situações requer atenção e doi a quem dela sofre.
Se há coisa dura para o ser humano é passar de cavalo para burro…


Quando passamos por dificuldades temos tendência a azedar e a olhar quem nos pareça menos sofredor (e atenção que o verbo parecer é importante) quase que com desprezo.
Vivo numa zona em que o parque automóvel é bonzinho…lol… confesso que, já mais do que uma vez, ao ouvir ronronar ao meu lado um Ferrari, um Maserati, um Aston Martin, pensei “Bolas, com o dinheiro que custa este carro eu resolvia todos os meus problemas financeiros…”
A realidade é que eu não sei o que se passa na vida daquele condutor. Não sei se estará em vias de ficar sem o carro e a mansão para pagar dívidas… também não sei se terá problemas de saúde, se lhe terá morrido a mulher ou se o filho será toxicodependente… ter um bom carro não é de todo sinónimo de ter uma boa vida.



Uma coisa que me parece fundamental nestas alturas é uma boa estruturação das nossas vidas por forma a não perdermos totalmente o controle.
Derrapagens sim, mas derrapagens controladas.
Quero eu dizer com isto que se tivermos uma boa noção dos nossos gastos, do custo da nossa vida, muito mais fácilmente poderemos manejar o barco conforme lhe der o vento.
Estarmos bem conscientes de quanto costumamos gastar e em quê, permite-nos fazer cortes racionais mantendo, dentro da medida do possível, uma relativa qualidade de vida.
De que nos serve ter o frigorífico atestado de cerveja se no dia seguinte nos cortarem a electricidade?
Os cintos podem sempre ir sendo apertados, se necessário fazem-se mais buracos, mas há que ter noção de como os fazer para que não rasguem.


É bom, para mantermos o ânimo, para continuarmos a sentir-nos vivos, permitir-mo-nos uma pequena excentricidade de vez em quando.
Um amigo contou-me uma história fantástica que exemplifica bem o que quero dizer.
A mãe usava todos os dias o comboio da linha do Estoril para ir para Lisboa. Um dia, no Cais do Sodré, hesitou em comprar cerejas a uma vendedora de frutas ambulante. Achou as cerejas caras, para quem, à época, contava os tostões, e decidiu não as comprar. Entrou na estação e foi para o cais. Aí, enquanto esperava o comboio, sendo doida por cerejas, achou que tinha sido demasiado espartana e resolveu voltar atrás: que diabo, não era por um quilo de cerejas que o orçamento familiar havia de ir abaixo.
Enquanto a vendedora ambulante lhe pesava as cerejas, no passeio, o tecto da estação do Cais do Sodré, que à época era em betão armado, desabou e soterrou uma quantidade de pessoas!
Houve dezenas de mortos e muitos feridos. As cerejas, naquele dia, não chegaram a ser compradas, porque com o estrondo todas as pessoas que estavam por perto fugiram a bom correr, em pânico e sem perceber bem o que se tinha passado.
O Pai, todos os anos compra cerejas nesse mesmo dia, para as saborear com ela… ;)



Outra coisa que acho importante é a humildade de saber aceitar o que nos queiram dar. O orgulho não serve para nada a não ser para nos fazer infelizes.
É natural, quando estamos na mó de baixo, que aqueles que por nós sentem apreço nos estendam a mão.
Muitas vezes temos pejo em aceitar por não nos ser possível retribuir… é quanto a mim um erro.
Se hoje em dia continuo a ir almoçar ou jantar fora de vez em quando, por exemplo, é porque amigos ou familiares me convidam. Tempos houve em que fui eu a fazer a mesma coisa por quem estava na situação em que me encontro hoje. Fazia-o do fundo do coração, sem qualquer espectativa de retribuição. Porque é que em sentido contrário havia de ser diferente?
Há quem se afaste das pessoas por não conseguir manter o estilo de vida a que estava habituado, por não ter capacidade financeira para as acompanhar… mesmo que estas estejam dispostas de alguma forma a proporcionar-lhes isso.



Finally, the last but not the least… é nestas alturas que, se mantivermos um espírito aberto e positivo, aprendemos a dar valor ao que é realmente importante. Eu sei que parece uma banalidade de se dizer...
Quando a minha crise começou, eu estava a entrar em parafuso. Andava doente, literalmente, já não conseguia dormir assombrada pelos meus problemas financeiros, estava a dar em doida. Um amigo ofereceu-me umas sessões numa psicóloga.
Fui lá uma vez e desbobinei, sem parar para respirar, tudo o que me andava a atormentar. Marcámos nova sessão para quinze dias depois.
Durante esses quinze dias o meu pai morreu.
Compareci à sessão seguinte, calma e serena, completamente diferente da pessoa que lá tinha entrado antes e disse “Vim só cá dizer que já não tenho problemas… o meu pai morreu… comparado com isso tudo o resto são peanuts.”
Não voltei a pôr lá os pés.
Desde então nunca mais deixei de ter problemas financeiros, mas esses não me voltaram a impedir de dormir.
Custam-me?! Com certeza, só se fosse parva é que me passariam ao lado, mas aprendi a dar valor ás coisas boas que tenho na vida e que me sinto na obrigação de aproveitar em vez de me lamentar da minha triste sorte.


E sobretudo nunca se esqueçam… por cima das nuvens o céu está azul e o sol brilha! ;)


6 comentários:

  1. Fantástica lição de vida! E também fiquei comovido. (tu sabes porquê...).
    Bjs!
    AM

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  2. ..."mas aprendi a dar valor ás coisas boas que tenho na vida e que me sinto na obrigação de aproveitar em vez de me lamentar da minha triste sorte."

    É esta a lição....

    Temos coisas muito boas na nossa vida só temos é de saber aproveitá-las...Este SOL maravilhoso de hoje....

    Beijinhos grandes ...
    PS: Comprei o livro do mano... E ainda não comecei a ler... Logo te digo se gostei ou não....Do que tu escreves gosto sempre.

    Rita

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  3. No pequeno texto que acompanha o título do blog diz lá que 'aspira a ter a serenidade para...' pelos visto já a encontrou, só uma pessoa serena consegue escrever este post acerca deste tema e remata-lo com aquela imagem de esperança

    se calhar o objectivo do post é mesmo esse, a mensagem positiva

    hoje de manhã, enquanto tomava o pequeno almoço, ouço esta reportagem

    no balneário de Alcântara são cada vez mais as pessoas que a ele recorrem para conseguir tomar banho grátis "é a crise" dizia o entrevistado e continuou "e já vão também aparecendo pessoas da classe média, pessoas já não conseguem sequer ter agua e gás em casa" e a repórter perguntou "e como é que o sr sabe que são da classe média" resposta pronta "porque vêm de carro"

    é esta a crise

    são os carros que não param
    os telemóveis de ultima geração
    os cartões de re-re-re-re-crédito

    são os gajos que com uma autoridade extraordinária são capazes de saber o nome dos jogadore3s do benfica (os que jogam e suplentes), as necessidades que o sporting tem em termos de jogadores, sabem inclusive qual a melhor tactica a utiizar pelo Quique contra determinado adversário, mas não conseguem saber que se ganham 1000 euros por mês e o banco lhes coloca à disposição um cartõa de crédito com um plafond de mais 1000 euros e se ele gasta esses 2000 euros nesse mês, a coisa o mais certo é dar barraca nos meses seguintes

    efectivamente por cima das nuvens o sol brilha, mas sinceramente só me vem à ideia que quando esse sol descobre, e hoje até foi um desses dias, ele ilumina muita gente estúpida por aqui.

    desculpe lá a extensão do comentário mas este é daqueles temas que me chateiam e já me chateavam muito antes de haver a 'crise' para justificar o infortúnio desta gente

    :|

    :)

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  4. Em tempos de crise...
    Não há nada como constatarmos o quanto somos afortunados.
    Como tu referes, entre o ser e o parecer passa uma galáxia...
    E, como a Senhora das cerejas, numa perspectiva figurada, às vezes vale a pena encher o frigorífico de cervejas se tivermos com quem as partilhar, ainda fresquinhas porque o frigorífico ainda está ligado - e convém comprar duas garrafas a menos para dar para as velas dos dias seguintes.
    As crises são chatas, muito chatas, por vezes graves, ou mesmo muito graves, mas enquanto vamos vivendo sem fome e com tecto, com o que precisamos de facto, dão-nos uma imagem de nós mesmos que, frequentemente, tem efeitos positivos; torna-nos mais capazes de acreditar no que somos capazes – ou no que somos – não no que desejamos parecer. Não chego ao ponto de dizer “viva a crise”, até porque há muito quem esteja a passa-la mal a sério, mas há reconhecer que muitas vezes trás consigo uma mais justa medida das coisas que nos afectam de facto.
    Espero dentro de uns tempos ter conservado o meu sentido de humor e conseguir usar um crachá a dizer: eu sobrevivi à crise! (mas aqui para nós, espero também que a crise não me sobreviva...)

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  5. Quem tem um salário garantido no fim do mês, não faz a mínima ideia do que é ter uma actividade sazonal, como a produção publicitária, ou cultural, que também variam em função dos índices da confiança do consumidor...! Acho que vivi sempre em crise, desde que me lembro. Umas piores, e outras... fudidas, como se diz nas colónias.
    Mas o que me trouxe hoje aqui, foi a primeira memória que eu tenho da morte: no dia do funeral do Aquilino Ribeiro, eu tinha doze anos e o meu pai estava internado em oncologia, de onde já não sairia. Alguns colegas, mais velhos, lá no Liceu Francês, faltaram às aulas para irem assistir ao funeral do grande escritor. Um deles foi, portanto, mais tarde apanhar o comboio para voltar para casa e ficou soterrado por baixo dos escombros do tecto da estação do Cais de Sodré. Chamava-se Carlos Miguel, era sobrinho da Ângela Grácio e primo do meu amigo Vasco. Já escrevia para o suplemento Juvenil do Diário de Lisboa e era porreiro com os "putos". Foi em Maio de 1963; a 28, diz no Google, mas não tenho a certeza. Nesse mês, também morreu o papa João XXIII.

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  6. Winds of change... a crise é como os ventos, varre muitas coisas, mas também leva as nuvens que tapam o sol. O problema é enquanto não leva, mas há de levar!

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