terça-feira, 7 de junho de 2011

Blasés

COM MÚSICA



É típico das crianças quererem muito qualquer coisa, chagarem o juízo dos progenitores até à exaustão e, quando finalmente a conseguem, dentro de um maior ou menor espaço de tempo, já não lhe darem a mínima importância.

Embora tenda a atenuar-se com a idade e, na maior parte dos casos, a tornar-se menos obvio, para muitos este padrão de comportamento mantêm-se até à idade adulta sendo, na minha humilde opinião, um dos factores que nos transformam em “António Variações”.

Quantas vezes não vibramos com a possibilidade de comprar um carro - com a escolha do mesmo - a inspecção de todas as paneleirices, os compartimentos, o movimento dos bancos, a arrumação da mala, o rádio e o computador de bordo - a condução dos primeiros trajectos - a apresentação aos amigos, “bora lá dar uma voltinha” ou “já viste que tem isto ou aquilo?!”...
Depois o tempo passa. O carro deixa de ser novidade, para ser só um meio de transporte. Descobrimos coisas que nos chateiam, nas quais não tínhamos reparado anteriormente. Vai envelhecendo, vão aparecendo outros mais modernos, com novos gadgets, menos consumo de combustível e vamos começando a gostar cada vez menos dele e a ter vontade de comprar um novo.

É difícilmente igualável a excitação de comprar casa - a pesquisa - a selecção -  a visita ás várias hipóteses e o avaliar dos prós e contras de cada uma – as terríveis decepções com algumas e o entusiasmo com outras – o destinar divisões e idealizar a colocação dos móveis - a decisão final – os passos legais e burocracias – a mudança – a decoração – a vivência num novo espaço.
Ao fim de um tempo já tudo é familiar, vai-se aquele sentimento inicial de “depaysement”  (que perdoem os que não falam francês mas fartei-me de puxar pela cabeça e não encontro a tradução do termo para português – estão perfeitamente à vontade para o considerar cagonisse da minha parte). Já conhecemos os cantos à casa, já temos tudo no sítio, já adquirimos e instalámos as últimas necessidades. Quantas vezes não deixamos de dar importância áquilo que no la fez comprar.

Quem não conhece as borboletas no estomago de quem se apaixona?! Aquela sensação de que morremos se não “tivermos” aquela pessoa – as inseguranças –  a sedução – o jogo da conquista – a victória. Os primeiros tempos em que parece que não conseguimos dar atenção a mais nada nem a mais ninguém. Os primeiros beijos (e vou ficar-me por aqui), as palavras mais ou menos melosas mas sempre ternas, a cumplicidade, o companheirismo, a saudade quando se está longe.
Ás tantas parece que já conhecemos o outro como a palma das nossas mãos. Vai perdendo a capacidade de nos surpreender. A rotina do dia a dia vai atenuando o espírito romântico. As suas histórias foram sendo repetidas até que já nos fartámos de as ouvir, já as sabemos de côr, são sempre as mesmas. O sexo acaba por sempre igual, mais coisa, menos coisa. Vai-se perdendo o mistério, a pica.

O nascimento de uma criança é sempre um verdadeiro milagre, uma montanha russa de emoções. A esperança de poder conceber - a tentativa de engravidar - a dúvida, a incerteza – os primeiros indícios, a suspeita de que possa ser “desta” – a transformação do corpo – as idas ao médico, os exames, as ecografias – o parto – os primeiros banhos – os primeiros passos – as primeiras palavras.
Depois “o bebé” transforma-se definitivamente no Asdrubalzinho, passando a ter direito à qualidade de gente, com as suas características muito próprias.  Vamos descobrindo os seus pontos fortes e os seus pontos fracos. Vamo-nos dando conta, na pele, do que implica trazer uma criança ao mundo.  Vai-nos pesando – no físico – na liberdade – na responsabilidade – na necessidade de aprender aquilo que acaba por ser um verdadeiro novo ofício.

Resumindo, acabamos por nos tornar “blasés” relativamente ás coisas que mais espectativa, empenho e prazer nos provocam na vida.

Já sofri desse sindroma.
E depois, um dia, que não sei precisar, deu-se em mim um clic e algo mudou definitivamente (espero).
Não imaginam o prazer intenso e continuado que retiro actualmente do que tenho.

O meu jipe velhinho, do alto dos seus vinte anos, dos quais já mais de quatorze nas minhas mãos, continua a encher-me as medidas. Certo que acabei por só duas vezes fazer todo o terreno com ele, o meu pai, o meu companheiro de aventuras, baldou-se e não tenho outros amiguinhos para brincar. Dá no entanto um jeitão para subir passeios e estacionar com duas rodas num plano inclinado. No verão, permite-me chegar ao estacionamento dos calões, aqueles que não têm de palmilhar quilómetros a pé, praia fora, com todo o tipo de tralha ás costas, para chegar a um sítio onde possa dispôr de um que outro metro de areia à volta da toalha. Os bancos têm amortecedores e ainda hoje aprecio a sua carícia no rabo quando passo por um buraco. No transito vejo por cima dos outros carros, tenho uma visão de horizonte que alivia o sufoco de me sentir presa.

Não se passa um dia sem que olhe para o meu minúsculo  jardim, literalmente “debaixo” da Serra de Sintra, e não me sinta uma priveligiada por aqui viver. Sempre que levo o meu filho à escola, apanhando um só semáforo pelo caminho e ladeando campos onde pastam cabras e andam cavalos à solta, penso no stress de Lisboa e suspiro de alívio. Sorrio interiormente de cada vez que abro uma gaveta que corre literalmente sobre rodas, quando fecho uma janela e praticamente deixo de ouvir os ronronares do autodromo, quando me levanto numa madrugada de inverno e vou para a casa de banho descalça, sem frio, graças ao aquecimento central.

Passada a fase da descoberta e habituação à vida conjugal, constantemente me congratulo por ter conseguido levar uma relação avante (as anteriores, coitadinhas, não deveram muito à longevidade). Admiro-me de cada vez que conseguimos ultrapassar uma crise complicada e fico contente de ver a nossa relação dela sair mais forte.  Dou por mim a observar o outro e a encara-lo com respeito, consideração, admiração crescentes conforme os episódios da vida se vão sucedendo e novas facetas vindo a lume.

De cada vez que olho para o meu filho, quando lhe vou dar um beijo antes de me deitar, o observo enquanto corre para mim na escola, me lembro de como já tinha desistido de o ter. Sinto-me abençoada. Comovo-me com a evidência da sua felicidade, alivio-me de o saber tão bem, tão saudável, com uma vida tão facilitada. Nunca páro de me surpreender, tanto com as suas parecenças connosco, algumas das quais sem origem na imitação mas num qualquer mistério genético, como com as diferenças, aquelas coisas que são só dele. A sua educação, o investimento de todo o meu ser na ajuda á formação do seu, fascina-me numa base diária.

Enfim, como disse anteriormente, um dia dei-me conta de que “estava assim”, de que apreciava intensamente tudo aquilo por que tinha desejado e até algumas coisas que me foram caindo na sopa sem pré-aviso. Dei-me conta de que retirava prazer da maior parte das coisas/pessoas/animais que me rodeiam. Aprecio genuinamente cada interacção, cada observação, cada movimento rotineiro. Sinto-me em relação a quase tudo como se ainda estivesse “em viagem de nupcias”.

Com o tempo, as coisas que desejámos, pelas quais nos encantámos, lutámos e ganhámos, vão-se acumulando e vamos tendo uma panóplia de prazeres cada vez maior.
Se mantivermos a chama acesa, que nem homem pré-histórico, se apreciarmos realmente o que temos em vez de desejarmos sempre algo que não temos, se não nos tornarmos blasés em relação á nossa própria vida, esta será garantidamente muito mais gratificante. ;)

4 comentários:

  1. Essa do "coisas/pessoas/animais" era comigo?

    Brincadeiras aparte, fico satisfeito que tenhas contentamento com a tua vida. A aspiração insatisfeita e permanente a mais ou a coisas diferentes é um dos dramas dos nossos dias.

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  2. Bem... era evidentemente contigo, dado que tudo o que me rodeia se poderá enquadrar numa das três categorias...
    Só ainda não consegui decidir em qual delas te enquadre a ti... ;)

    PS: Só porque comentei que este post me tinha dado um gozo especial a escrever e que achava que me tinha saído bem, não era preciso sentires-te na obrigação de cá vir cagar sentença... lolololololololol

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  3. Mas senti, mas senti.

    Eu venho cá sempre. Embora nem sempre faça essa coisa com as sentenças.

    Bj

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  4. Pois... eu percebi, percebi. ;)

    Mas sabes que não sinto necessidade de comentários... só se as pessoas quiserem mesmo comentar... não preciso de comentários só para mostrar que leram. ;)

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